quarta-feira, 23 de março de 2011

Diário De Rorschach


12 de outubro de 1985.
Carcaça de um cão morto no beco hoje de manhã com marcas de pneu no ventre rasgado. A cidade tem medo de mim. Eu vi sua verdadeira face. As ruas são sarjetas dilatadas cheias de sangue e, quando os bueiros transbordarem, todos os vermes vão se afogar. A imundice de todo sexo e matanças vai espumar até a cintura e as putas e os políticos vão olhar para cima gritando "salve-nos"... e eu vou olhar para baixo e dizer "não". Eles tiveram escolha, todos. Podiam ter seguido os passos de homens honrados como meu pai ou o presidente Truman. Homens decentes, que acreditavam no suor do trabalho honesto. Mas seguiram os excrementos de devassos e comunistas sem perceber que a trilha levava a um precipício até ser tarde demais. E não me digam que não tiveram escolha. Agora o mundo todo está na beira do abismo contemplando o inferno e os liberais, intelectuais e sedutores de fala macia... de repente não sabem mais o que dizer.

13 de outubro de 1985
Dormi o dia todo. Acordei às 16:37, com a senhoria reclamando do cheiro. Ela tem cinco filhos de cinco pais diferentes. Deve enganar a previdência social. Logo vai anoitecer. Lá embaixo a cidade grita como um matadouro cheio de crianças retardadas. Nova York. Sexta à noite um comediante morreu em Nova York. Alguém sabe por quê. Lá embaixo... alguém sabe. O crepúsculo fede a fornicação e más consciências. Acho que vou me exercitar. 

Primeira visita da noite infrutífera. Ninguém sabia de nada. Sinto-me deprimido. A cidade está morrendo de hidrofobia. Será que só consigo limpar a baba da sua boca? Jamais se desesperar. Jamais se render. Deixo as baratas humanas discutindo heroína e pornografia infantil. Tenho assuntos a tratar com outra classe de pessoas.

20:30. Encontrar Veidt me deixou um gosto ruim na boca. Ele é mimado e decadente. Traiu até mesmo suas próprias hipocrisias liberais. Talvez homossexual? Devo me lembrar de investigar mais. Dreiberg não fica atrás. Um fracassado lamuriando-se no porão. Por que restam tão poucos de nós na ativa e sem desvios de personalidade? O primeiro Coruja é dono de uma oficina. A primeira Espectral é uma puta velha e inchada morrendo num asilo na Califórnia. Capitão Metrópolis foi decapitado num acidente de carro em 1974. O Mariposa está num hospício no Maine. Silhouette aposentou-se em desgraça. Foi morta seis semanas depois por alguém querendo vingança. Dollar Bill foi baleado. Justiceiro Encapuzado sumiu em 55. O Comediante está morto. Só restam dois nomes na minha lista. Ambos moram no Centro Rockefeller de Pesquisas Militares. Eu vou até eles. Vou avisar o homem indestrutível que alguém planeja matá-lo.

23:30. Sexta à noite um comediante morreu em Nova York. Jogado pela janela. Quando atingiu a calçada, a cabeça dele entrou no estômago. Ninguém liga. Ninguém além de mim. Será que eles estão certos? Logo vai haver guerra. Milhões vão queimar. Milhões vão perecer de doença e miséria. Por que se importar com uma morte? Porque existe o bem e o mal, e o mal tem de ser punido. Mesmo à beira do fim, isso não vai mudar. Mas muitos merecem punição... e há tão pouco tempo.

16 de outubro de 1985.
Rua 42: seios nus se esparramam de todos os outdoors, de todos os cartazes, sujando a calçada. Me ofereceram amor sueco e amor francês... mas não amor americano. Amor americano; como Coca em garrafas de vidro verde...eles não fazem mais. Pensei na história do Moloch a caminho do cemitério. Pode ser mentira. Parte de uma vingança planejada durante uma década atrás das grades. Mas, se for verdade, o que significa? Referência intrigante a uma ilha. Também ao Dr. Manhattan. Será que ele corre perigo? Tantas perguntas. Tudo bem. Respostas em breve. Nada é insolúvel. Existe esperança. Enquanto houver vida. No cemitério, cruzes brancas se enfileram, marcas de giz numa lousa gigante. Faço última visita em silêncio, sem alarde. Edward Morgan Blake. Nascido em 1924. Comediante por 45 anos. Falecido em 1985, enterrado na chuva. É o que acontece conosco? Uma vida de conflitos sem tempo para amigos... e no fim só nosso